Partilhando o olhar...

Passear o olho, 
passear a pele de textura grossa - quase impermeável.
Raspando no elevador antigo, parado. 
Potência, perdeu a função de elevador, ganhou função de imagem.
Embaixo mora lixo. Pesado, enferrujado. Não consigo sair dele. A pele vai rachando.
Parece que árvore passeou por aqui também - 
tem fruta comida e seca, folha verde e fresca - faz pouco tempo.
Acho que aqui foi um hotel: "Permanências e destruições".
Re-li o papel.
Tudo muito cheio de rachaduras, linhas com muitas sinuosidades.
Tudo que dura não fica reto, ganha curva.
As vezes aqui transporta pra outra cidade,
memória de praia ou de campo, mas só no teto.
Tem chão que convida. Tijolo desnudo. Espelho oco.
As manchas no chão fazem desenho de folha. 
Olha o lugar de porta-passagem! Dá vontade de ocupar, mexer.
Parede pintada de cagada de bicho.
- Parece os dias de mudança quando escolho meu quarto na casa nova. -
Os vestígios são pontudos no atravessar em mim, 
vestígio de cômodo que já teve outra forma
 e parece ainda se adaptar a forma atual.
Parece ter vida, acho que tem mesmo.
O barulho na rua invade súbito, 
puxa para fora,
dá choque no olho.
Acho que a árvore é testemunha ativa desse hotel.
(hotel-passagem)
as folhas visitam  convidadas pelo vento.
MORCEGOS!
                     e agora? 
corri....

prendi o olho nas manchas do parapeito.




Depois da expedição cartográfica, descoberta: O ESPAÇO. Outra pista. A relação com/no espaço é uma porta de entrada para acessar estados de dança. Mas é uma relação à maneira do flanêur, que deriva no espaço, sem criar expectativas de fazer uma dança, um distraído quase proposital. Semelhanças com a atenção do cartógrafo (flutuante, concentrada e aberta)*?! Por contágio, sim!

* texto "O funcionamento da atenção no trabalho do cartógrafo ", livro: Pistas do método da cartografia.

Bruna.

Sobre o flanêur:

A Rua - João do Rio

"Para compreender a psicologia da rua não basta gozar-lhe as delícias como se goza o calor do sol e o lirismo do luar. É preciso ter espírito vagabundo, cheio de curiosidades malsãs e os nervos com um perpétuo desejo incompreensível, é preciso ser aquele que chamamos flâneur e praticar o mais interessante dos esportes – a arte de flanar. É fatigante o exercício?
Para os iniciados sempre foi grande regalo. A musa de Horácio, a pé, não fez outra coisa nos quarteirões de Roma. Sterne e Hoffmann proclamavam-lhe a profunda virtude, e Balzac fez todos os seus preciosos achados flanando. Flanar! Aí está um verbo universal sem entrada nos dicionários, que não pertence a nenhuma língua! Que significa flanar? Flanar é ser vagabundo e refletir, é ser basbaque e comentar, ter o vírus da observação ligado ao da vadiagem. Flanar é ir por aí, de manhã, de dia, à noite, meter-se nas rodas da populaça, admirar o menino da gaitinha ali à esquina, seguir com os garotos o lutador do Cassino vestido de turco, gozar nas praças os ajuntamentos defronte das lanternas mágicas, conversar com os cantores de modinha das alfurjas da Saúde, depois de ter ouvido dilettanti de casaca aplaudirem o maior tenor do Lírico numa ópera velha e má; é ver os bonecos pintados a giz nos muros das casas, após ter acompanhado um pintor afamado até a sua grande tela paga pelo Estado; é estar sem fazer nada e achar absolutamente necessário ir até um sítio lôbrego, para deixar de lá ir, levado pela primeira impressão, por um dito que faz sorrir, um perfil que interessa, um par jovem cujo riso de amor causa inveja.
É vagabundagem? Talvez. Flanar é a distinção de perambular com inteligência. Nada como o inútil para ser artístico. Daí o desocupado flâneur ter sempre na mente dez mil coisas necessárias, imprescindíveis, que podem ficar eternamente adiadas. Do alto de uma janela como Paul Adam, admira o caleidoscópio da vida no epítome delirante que é a rua; à porta do café, como Poe no Homem da Multidões, dedica-se ao exercício de adivinhar as profissões, as preocupações e até os crimes dos transeuntes. É uma espécie de secreta à maneira de Sherlock Holmes, sem os inconvenientes dos secretas nacionais. Haveis de encontrá-lo numa bela noite numa noite muito feia. Não vos saberá dizer donde vem, que está a fazer, para onde vai. Pensareis decerto estar diante de um sujeito fatal? Coitado! O flâneur é o bonhomme possuidor de uma alma igualitária e risonha, falando aos notáveis e aos humildes com doçura, porque de ambos conhece a face misteriosa e cada vez mais se convence da inutilidade da cólera e da necessidade do perdão.
flâneur é ingênuo quase sempre. Pára diante dos rolos, é o eterno "convidado do sereno" de todos os bailes, quer saber a história dos boleiros, admira-se simplesmente, e conhecendo cada rua, cada beco, cada viela, sabendo-lhe um pedaço da história, como se sabe a história dos amigos (quase sempre mal), acaba com a vaga idéia de que todo o espetáculo da cidade foi feito especialmente para seu gozo próprio. O balão que sobe ao meio-dia no Castelo, sobe para seu prazer; as bandas de música tocam nas praças para alegrá-lo; se num beco perdido há uma serenata com violões chorosos, a serenata e os violões estão ali para diverti-lo. E de tanto ver que os outros quase não podem entrever, o flâneur reflete. As observações foram guardadas na placa sensível do cérebro; as frases, os ditos, as cenas vibram-lhe no cortical. Quando o flâneur deduz, ei-lo a concluir uma lei magnífica por ser para seu uso exclusivo, ei-lo a psicologar, ei-lo a pintar os pensamentos, a fisionomia, a alma das ruas. E é então que haveis de pasmar da futilidade do mundo e da inconcebível futilidade dos pedestres da poesia de observação..."

O livro completo, 'A alma encantadora das ruas', no qual o conto se encontra está disponível no link abaixo.








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