segunda rota

Minha caminhada se misturava a das outras pessoas na rua, estava indo para a Casa Porto, e parecia que todos na rua também estavam indo a algum lugar, todos no meio de suas trajetórias. Eu me misturava porque a textura do passo combinava com a do passo dos outros, firme, bem achado, sabendo a direção do caminho. Notei um peso suspenso entre a av. Presidente Vargas e a Rio Branco, e seguia assim, peso suspenso, até a rua que chamei de rua-passagem. Na obra da Odebrecht, um guincho segurava alguma coisa grande que não identifiquei, tinha uma placa pra quem ousa olhar pra cima: "Cuidado, peso suspenso!". Ninguém olhava pra cima na Rio Branco, nem eu, parece que o céu se distancia, empurrado pra cima pelos prédios, me dá uma sensação de corredor móvel de desenho animado, a qualquer momento vou ter que sair correndo até o final da avenida antes que os prédios se fechem eu fique espremida entre uma porta espelhada e outra, seria um motivo para as pessoas andarem tão veloz por ali... a velocidade contagia. Um senhor parou do meu lado assobiando "a bruma leve das paixões que vem de dentro...". Ele parecia nem um pouco mordido pela velocidade, parei o pensamento maratonista que me insiste, e cantarolei no pensamento.
Na rua-passagem só tinha 3 camelôs (antes do Porto ganhar valor monetário aquela rua era a rua dos camelôs). Eu chamo assim porque parece que ao passar por ela eu entro num espaço completamente diferente do que aquele que vinha caminhando. A região portuária me lembra o Fórum de Ciência e Cultura, com suas camadas, sobreposições, azulejos coloridos provocando memória de tanta coisa que eles já devem ter presenciado... imaginar a memória dos azulejos... Um muro branco asséptico do lado de uma fachada esburacada, uma porta contendo mundos inteiros, parecendo o buraco que a Alice cai. Cortiços - resistência. Uma certeza dolorida de que o que eu via desapareceria, assim como desapareceu tanta coisa há poucos anos e eu nem consegui ver, coisas, gentes e gentes-coisas. No lugar, prédios bem grandões, combinando com o "progresso" da cidade, sem dar escuta, importância, olhos para a relação corpo-espaço-cidade, e dessa relação potencializar o habitar.
Na caminhada pela região portuária, sem o objetivo de chegar a algum lugar - o caminho já é o lugar que se quer chegar - o corpo mudou todo comparado ao corpo da caminhada da chegada a Casa Porto. Não estava mais misturada com os passantes, sentia de cor diferente, no cru, turista. Viajar para a própria cidade, olhar com o olho das coisas - quando as coisas me olham de volta eu vejo as coisas. Olho que me lembra olho de viagem, o desejo de ver as invisibilidades do lugar.
Poeira, garganta seca, meleca preta. Espirros. Terra colchão de gente, gente dormindo. 30 mil mortos-assassinados debaixo do pé. História do cocô escorrendo na cabeça do escravo. Azulejos com desenho de corpos fragmentados, corpos com pedaços roubados simbolizando o tempo da escravidão. Uma multinacional ocupando o Moinho Fluminense desde a ditadura. O esgoto escorrendo pelas escadas dos sobrados. Tem um hospital psiquiátrico. A praça da harmonia desocupada perde cor.
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