Cartografia (19 de outubro de 2015)


 Ao sair do metrô, é como se meu corpo rasgasse uma película fina-espessa. Largo umas camadas e adentro o espaço.  Mergulho e me misturo aos passos rápidos, gestos precisos, olhar em atenção de vigília das pessoas que compartilham passos comigo nas ruas do centro.  Barulho. Barulho. A cidade acordada está à todo vapor. Enquanto vou me aproximando do morro, parece que as camadas da cidade mudam de tom, textura, cor, cheiro, densidade e volume. Nas ruas próximas ao morro, mercados, pequenos comércios, padarias e bares não fecharam suas portas nessa segunda, dia do comércio.

Olho para a Praça Mauá que a cada semana tem sua paisagem modificada. Os ônibus gigantes ocupam o espaço. A praça parece flutuar limpa, límpida e branca no caos de sons, cores e, formas da cidade.

Sigo caminhando e me admiro novamente com o colorido ondulante das ruas próximas o morro. Meu caminho até a Casa Porto é florido pela árvore com folhas recém rosas e as cores gritantes dos grafites dos prédios grandes.

Hoje cheguei um pouco mais cedo e, enquanto aguardava, meu corpo se demorava na praça, meus olhos paqueravam paredes, abriam-se para o colorido das pinturas dos muros, sorria para as ruas ondulantes, conversava com o pássaro da árvore da frente. Poucas pessoas nas ruas e os muros e paredes, árvores e pássaros, tons, sons e cores sobressaíam e conversavam comigo. Cochichamos muito hoje. Eu, (n)a janela e a praça.      

O grupo começa a chegar. Falamos muito da performance, ocupar espaços, sobre nosso fazer... Falamos sobre Fernand Deligny seus “gestos para nada” e a força de contágio do coletivo em sua aposta.

Hoje estamos só nós quatro: Bruna, Thaís, Lídia e eu.
Subimos por um novo caminho. Cada dia um percurso, um modo de adentrar o labirinto do Morro com seus espaços cheios de curvas, de vazios, de sobe-desce, de pousos para o olhar. Cada dia um novo acesso.

Meu corpo todo se expande ao subirmos a rua, sinto meus poros se eriçando e o olho atrás da câmera do celular guia-expressa um modo de caminhar que capta impressões do lugar.  Sim são im-pressões: as camadas coloridas das paredes, as cascas das árvores, as folhas, flores e pessoas se pressionam em minha pele e me sinto abraçada pelo lugar.







Caminhamos por ali sem roteiro prévio, seguindo o fluxo das ruas do morro. Ao chegar perto dos meninos da boca, sentimos um ar de tensão, muito movimento contido, pouca fala e muita densidade no ar. Seguimos. Hoje o chão dessa parte do morro está bem sujo. Cães e gatos andarilhos atravessam nosso caminhar.



Paramos. Fazemos uma pausa para pousar o olhar. Lídia encostada na parede da casa da moça que sobe a ladeira que é a mesma da janela de duas semanas atrás, a mesma que daremos licença para ela entrar na sua casa e ela se lembrará de nós e das flores deixadas do lado de fora do altar das santas e que foi colocada dentro do altar por sua vizinha que cuida do altar. Essa vizinha, há duas semanas atrás, contou para Thaís o percurso das flores até chegarem no altar das santas e como essas foram encontradas por uma moradora antiga do morro.  Sinto como se um laço de afeto entre nós se fizesse ali naquele instante.  Um “gesto para nada”, sem intenção que faz ver nossos passos pelo lugar.

Lídia deita no chão da ladeira e meu corpo também é convidado a não ter pudor com o chão da rua e gesta um novo modo de estar. Pensamos em proposições, intervenções e performances e nos damos conta que somente “estar ali para nada”, deixar acontecer, deixar-se demorar, parar a vigilância e o controle é a nossa performatividade cartográfica. E assim a senhora da janela de duas semanas atrás é a mesma que nos reconhece, nos dá bom-dia, nos lembra do encantamento das flores do altar das Santas.

Thaís que mora no morro é sempre um ponto de acesso. Uma vizinha a convida para uma festa de santo em seu Terreiro em Pedra de Guaratiba, outra para o carimbó da praça. Os moradores começam a se acostumar com nossa presença e chegam até nós muitas vezes através de Thaís.

Crianças passam com seus pais indo para a escola, outras vão comprar biscoitos na venda da esquina, um menino passa pulando para comprar ovos na mercearia e quase volta com um omelete nas mãos. A vida corre e escorre com outra intensidade e velocidade por aqui. Nem parece que estamos no centro do Rio de Janeiro. Resiste aqui um certo modo de estar na cidade. Esse é sempre um convite para habitar o espaço do Morro da Conceição: deixar o corpo mover como serpente por caminhos-ladeiras ondulantes-labirínticos num gesto mais vagaroso, mais demorado e com muitas curvas, esquinas, encruzilhadas, portos, praças, adros, ilhas.  Espaços vazios-cheios de possibilidades.

Não sabemos ainda como retribuir o que o espaço do morro produz em nós, mas sei-sinto que ele me des-orienta, me des-foca, me dá novas camadas de tempo, novas peles de contato, novos res-piros.

Meu corpo leve-serpente-ondulante es-corre solta pelo espaço das ruas do morro. 









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