Não sei nas segundas-feiras


9 de Novembro de 2015

Permito uma brecha no cotidiano, tão cheio de previsões, tão pressionado a dar conta do daqui a pouco, afrouxo e abro o corpo no presente, habito o não saber o que irá acontecer, solto o ar da ansiedade, fico à espreita de um encontro, exercício matinal da segunda-feira: abrir e espreitar.

A casa porto nessa manhã estava recheada de palavras. Elas penetravam na pele, criavam com o pensamento um corpo robusto e poroso, acionavam os estados de dança, que começavam ali, na palavra.

Se nos dermos esse tempo, esse silêncio, essa brecha; se suportarmos manter a ferida aberta, se suportarmos simplesmente (re)parar – voltar a parar para reparar no óbvio até que ele se ´desobvie ´ - então, eis que o encontro se apresenta e nos convida, na sua complexidade embrulhada em simplicidade. (comido do texto O encontro é uma ferida, da Fernanda Eugénio e do João Fiadeiro).

Da Casa Porto para o Morro da Conceição as palavras ressoavam no corpo. A travessia que se dava para nós, ela que nos convidava, nós não pré decidimos os caminhos, ele nos toma, se apresenta para nós, se abre e a gente micropercebe, intui e vai.
Nós, núcleo, estamos em processo de borramento dos contornos que nos afastam da experiência com os lugares e pessoas, aqueles contornos que delimitam sujeitos, objetos e objetivos, que nos exigem saber, apreender, entender, prever, objetivar, tudo antes da experiência. É que antes a gente não sabe, e não por falta de produção, implicação, pesquisa, estudo, a gente não sabe antes da experiência porque a gente escolhe e se desafia a encontrar (com - pessoas, lugares, danças, intensidades, produções de sentido...) 
Descontornadas, na borração, pelos adros e travessas o caminho inverteu. Começamos uma nova rota pelos mesmos caminhos. É fechadura ou luneta? Nos perguntávamos sobre uma imagem que vinha quando a gente põe o olho do corpo todo no espaço. Espiamos numa fechadura e dentro vimos outra fechadura, do olho da fechadura encontramos uma dança.

A gente espreitando... estando... parando.. . caminhando e... cambalhota! Caixote (de onda do mar) do encontro.

Uma mulher-janela. Um platô de pedra. Chão áspero, largo, buracos e canos, muro de planta nascida. As janelas mostraram seus olhos no corpo todo com íres de mulher.

A janela-mulher de cima não sabia que queria ver dança, recusou nosso convite, achou tanta coisa antes mesmo de ver que deu só o rabo de olho para nós.  A janela-mulher de baixo, veio lá de dentro da casa, com o prato de almoço na mão, olhou com o corpo todo para nós, ela queria ver uma dança...
 
A gente passava ali quase todas as caminhadas, aquele lugar me confundia, destoava. Um espaço enorme, vazio, nada com nada, de frente para as casas, espremendo um corredor que delimitava o entre das casas com esse espaço, meio palco, meio nada. A gente parou ali, e fez uma dança. Eu fui olhada pelo Zé escrito no muro, e me inscrevi ´zé[corpo-eu]´, fiz uma dança para as janelas-mulheres, entrei no meio da revoada dos pássaros e dancei com eles. As mãos no chão me faziam gato contagiada pelos felinos no corpo da Ruth, o barulho dos sapatos esfregados no áspero do chão me faziam lembrar de uma dança que a gente fez lá no Fórum de Ciência e Cultura. Um corredor formado pelo invisível que todo mundo via, e a gente ia e vinha nele. Ninguém ficou tonta. A pista da relação com/no espaço abriu a porta de acesso para estar em estado de dança, a dança veio no encontro com as pessoas e os lugares, na experiência do estar-com.

A janela-mulher de cima já não nos dava mais o rabo de olho, pediu mais dança quando a gente parou. A janela-mulher de baixo encostou nas memórias e contou sobre aquele espaço que dançávamos. Antes de vazio era jardim, canto do churrasco dos vizinhos, lugar para tomar uma chuveirada, para estar junto. Foi aos poucos ficando desencontrado, depósito de lixo, de tráfico, então os moradores decidiram enterrá-lo, tiraram o jardim, o lixo, o chuveirão e a churrasqueira (que já estava estragada). Virou um grande túmulo, com bichos e memórias dentro dele.

Ficamos de voltar na próxima segunda, convidadas pela janela-mulher de baixo, ela disse que vai preparar uma coisa para a gente e mostrar umas fotos do túmulo quando era vivo e ocupado. Também nos chamou para ir lá no sábado, quando seus vizinhos estão em casa e tem muita criança passando.
















[Bruna]

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