Ocupa SUS 20/06/2016 

Sou psicóloga e dançarina. Sou da arte e da saúde e de muitas outras lutas. Venho aqui nesse entre-lugar. Chego zonza e tonta. Faço uma pausa para um café e um pouso para estar e chegar. Chego e me deparo com uma roda de muitas mulheres que ouvem dois homens falando. Depois de um tempo entendo: são alunas e alguns alunos, agentes comunitários de saúde e os homens são professores da Fundação Oswaldo Cruz.

No meio de um hall de um prédio público uma aula. Primeiro deslocamento...

     


Entre usuários que passam para pegar medicação ou resolver situações relativas à saúde ouve-se uma aula sobre o Golpe de 2016 no Brasil. Por que essa palavra golpe?  Esse golpe foi como o golpe militar? Que consequências esse novo golpe traz para a vida pública?

Estamos atentas... Um rapaz que fica na borda, na porta de entrada do prédio captura meu ouvido. Ele grita: "Ela (a saúde) tá precária, tá difícil, mas ela tá bem... Ela sim tá bem. Quem tá mal sou eu. Eu que tô na rua". Sua voz ecoa em mim. E os usuários da rede de saúde? Onde eles estão no meio dessa ocupação? Como trazê-los, ouví-los?  Esse eco do rapaz da borda ressoa em mim...

Bel nos recebe e diz que todos da ocupação estão contentes com nossa presença. Preferimos estar com eles, acompanhando o movimento que já lá está do que propor algo. Estamos abertas. Confesso que como profissional de saúde estava um pouco ansiosa pelo movimento de cuidado, mas quando meu olho encontra o olho de Lídia encontro um apoio e respiro e entendemos juntas que podemos esperar para que algo enfim possa se fazer.

Subimos para o nono andar onde fica a sede do Ministério da Saúde do Estado do Rio de Janeiro. Encontramos Ingrid e conversamos. O espaço nos acolhe. Sinto-me numa casa de um parente que há muito não encontro. Estranhamento e aconchego. Tão bom estar, simplesmente estar.  Sentar no chão e conversar. Sentar no chão e escrever. Sentar no chão para comer junto. Estar junto. Viver junto. O espaço público ficou tão íntimo. Virou casa de todos nós que ali estávamos.


Basta estar para algo acontecer. E tanta coisa acontece que não tem palavra para ser grafada no texto e nem palavra para saltar da boca que consiga dizer sobre o que  aqui se passou entre-nós.

Nas beiradas do texto escorrega de mim o que não cabe mais no corpo. Vem uma emoção de estar. O que é emoção?  Como é se emocionar, ser afetado por algo? Tem tanta coisa acontecendo nesse instante, nessas brechas de tempo que não cabem aqui nem na minha boca.

Bruna e eu seguimos para outras tantas lutas diárias apesar da dificuldade de sair do estado de estar. Laura, Thaís e Lídia ficam um pouco mais. Estendem no corredor o túnel de tecido que Lídia costurou. Túnel  tecido de afeto inspirado na proposição de Lygia Clark. Elas que ficam tem dificuldade de deixar de estar ali...



No domingo, 26 de junho, voltamos.



No domingo é tudo muito diferente. O prédio parece vazio para quem chega. Adriana e outras pessoas da ocupação descem para nos receber. Hoje somente o nono andar está ocupado. No hall do andar uma reunião de médicos do SUS e lá dentro o povo da ocupação segue acordando após a vigília de ontem. 

Eles demoram a acordar e nós acolhemos. Hoje estamos somente Lídia, Thaís e eu. Está delicada a situação da ocupação que está sob ameaça de reintegração de posse do espaço. Eles estão cansados da festa e da luta, mas re-existem.  Levamos balde e panos de chão para limpeza do espaço, mas entendemos que eles estavam muito cansados para tal ação. Levamos o túnel, mas sentimos que talvez fosse de muita intensidade passar pelo túnel num momento onde eles estão já muito envolvidos com o desconhecido. Levamos o tecido para fazer uma proposição inspirada na obra "a viagem" de Lygia e acolhemos essa ação por perceber que ela se sintonizava mais com o momento pressente.

Criamos uma roda para chegar no corpo (a-com-chegar).

Acordar o corpo: esculpir, lavar, percutir. Cuidar.

O trabalho segue  com o objeto-tecido sendo espaço de mergulho para a deriva do corpo-coletivo. Eles estão tão desejosos do cuidado de si e do outro (que são aqui indissociáveis) que muito facilmente se tornam de fato protagonistas da ação. É bonito de ver como eles se envolvem no cuidado de cada um que passa pelo centro do tecido. Cada corpo sendo singular na sua diferença recebe um jeito de ser cuidado. Eles nascem, se renovam. Muito bonito o que se passa com cada um, o que passa em cada um cuidando do outro. Aqui fica claro que o cuidado de si e do outro não se separam. E a palavra aparece na fala de Everson. Finalizamos e sentamos sob o tecido e é difícil para mim dizer, meu corpo treme da cabeça aos pés. Somos "amor da cabeça aos pés". Choramos. A água que brota do olho fala mais do que mil palavras. Damos as mãos, respiramos. Agradecemos a todos pela partilha amorosa e cuidadosa. A sensação ressoa ainda e é difícil dizer. Importante lembrar que estamos lutando pela SAÚDE PÚBLICA EM NOSSO PAÍS.

Hoje antes de escrever essas frases, recebo a notícia que Sandro morreu, de novo as águas brotam se cessar dos olhos. Sandro era porteiro do prédio onde moro. Nunca morei em prédio com porteiro por achar muito errado que a gente precise de pessoas para abrir a porta para gente entrar em casa e por me indignar que a  gente precise disso em nosso país por medida de segurança, mas também pela memória ainda presente de colônia que um dia foi cede da Família Real Portuguesa. O rio ainda tem muitos traços da vinda do rei. Sandro morreu porque era pobre, tinha um trabalho onde além de ganhar pouco, ficou doente e precisou do SUS. Não conseguiu atendimento há tempo no hospital de referência para sua necessidade. Como uma pessoa de origem pobre que teve a oportunidade de passar para uma Universidade Pública com muito esforço porque na época não havia cotas, como psicóloga que acompanha a luta há anos de meus companheiros-mestres e colegas na luta pela criação, implementação e continuidade do SUS de qualidade para TODOS, fica meu grito-texto-tecido de afeto, desejo, luta e também indignação pela vida de tantos  Sandros que dependem SIM DE UM SUS DE QUALIDADE PARA TODOS. Resta em nós o desejo de insistir na potência de transformação da vida e o desejo de re-existir ocupando afetivamente os espaços. 


ruth         
  

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