Sobre ser-mulher e caminhar nas ruas do cais

Os dias pesam sobre a cidade Maravilha que aguarda os Jogos Olímpicos. Cidade que grita. Se ela falasse poderia contar tantas histórias que a velocidade midiática não consegue sustentar. 
Hoje o beco que leva a primeira subida para Conceição está vazado: não acolhe os corpos dos moradores de rua, nem reserva espaço para os ambulantes.
Hoje apenas um ambulante resiste perante a guarda municipal que, ao menos hoje, usa a palavra e não a força. 
Chego ao nosso porto e aguardo Laura e Thaís. Bruna está a caminho. Lídia está doente.
Converso com Francisco e sob um espanto compartilhado falamos da ação da polícia na Ocupação da SEDUC. Nada é notificado nos jornais até àquele momento, mas sabemos que a violência opressora do Estado está operando e tentando minar  a força revolucionária de nossa juventude.
As meninas chegam e conversamos sobre essa nuvem cinza que está flanando sobre nós. A mesma nuvem que pesa traz a luminosidade dos dias. 
Thaís conta que caminhou ontem pelas ruas do cais. Como moradora da região portuária vive de perto os paradoxos das mudanças da cidade. Agora  é bom andar por alí, a brisa do mar chega, os pássaros podem dançar ao vento, mas essas ruas não dão mais colo a tantos desabrigados da ordem social.
Thaís nos convida a iniciar nossa expedição cartográfica pelo cais. Penso no gesto do agarralargar que nos propomos a fazer mais uma vez. Eu penso e Laura aponta um graveto branco perdido na Casa Porto e nossos corpos sintonizam no gesto partilhado  e seguimos agarrarlargadas pelas ruas do cais.    
   

Os movimentos precisam ser atentos para o lado de dentro (espaço entrelaçado da relação) para o lado de fora (os movimentos captados das derivas pelo cais). O corpo todo também tem que se agarrarlargar: das ideias preconcebidas, das direções determinadas  e ele flana. O   corpo capta o espaço e cria um espaço em relação, em com-posição. Nos colocamos ao lado para tecer um tempo-termplo uma-com-as-outras. Tudo que o olho vê, ele vê-com, formamos um corpo-com.    O tempo está alargado  e o espaço é deriva. Somos teia em movimento. Sinto como se meu corpo tivesse multiplicado suas direções no espaço e vê-sente o vôo dos pássaros,  brisa do mar, as paredes das construções tudo a nos tocar e nos transformar, a nos atravessar numa 'transa" plurisensorial onde de fato #tamojunto#.


Estamos tão juntas que nosso corpo desloca o espaço. Somos só mulheres. Somos só três mulheres com a força de uma multidão. Caminhamos pelo cais e a única outra mulher que partilha aquele lugar conosco é uma mulher que trabalha num dos prédios já inaugurados. Somos três mulheres agarrarlargadas e muitos homens que se espantam com nosso gesto: primeiro olham as mulheres e quando veem o  objeto que nos entrelaça retornam o olhar num gesto demorado e estranhado. Somos só mulheres num gesto paradoxal que se antes era para nada, para vagar, ao encontrar o olho do operário da construção do cais toma um tom de deslocamento: não, não são só mulheres que andam sozinhas pelo cais, elas carregam um objeto para nada, para vagar, elas estão juntas, entre-laçadas e agarrarlargadas.  








Encontramos um caminho para o Morro e seguimos até lá. É bonito ver de onde estamos a Conceição se anunciar bela em seus casarios. Ela nos chama e nós a seguimos.



Seguimos por um novo caminho. Passamos em meio às obras da cidade Maravilha e mais uma vez encontramos o olhar deslocado de homens que se antes buscavam ver nossos rabos, se atentam ao pau-graveto que agarrarlargamos.

Encontramos um prédio que é uma escola de crianças do ciclo fundamental apesar de parecer uma pequena prisão escura. Olhamos pelo buraco do portão e sai de lá um homem que parece o inspetor, mas parece um louco no manicômio. Esse homem poderia ser um louco do manicômio, um presidiário, mas era tudo isso e também um inspetor de escola. Thaís pergunta se a escola está ocupada. O homem não entende num primeiro momento e diz que para saúde, educação e cultura "não tem dinheiro porque não tem lucro". Digo que aquela escola parece de fundamental que não deve ser estadual e não está de greve. Ele me olha em meio aos seus brados desconexos e diz "Isso mesmo. Aqui não tem esse negócio não. É criança pequena" . Ele parece a um só tempo se indignar e se colar ao discurso dominante. Sai uma mãe e uma criança de lá  de dentro, a mãe sorri e a imagem não se cola: o sorriso  dela  e a escuridão do lugar. Saímos de lá com uma sensação forte de que uma janela se abriu para nós naquela cena. Um janela que mostra as contradições de  nosso tempo presente. Entendo agora o caminho de deriva do pensamento de Foucault que se debruçou por tanto tempo perante as instituições disciplinares para no final da vida nos brindar com seu texto sobre "o corpo utópico e as heterotopias". Esse texto faz tanto cidade aqui-agora. Precisamos fazer ventar a instituição, ocupar de afeto para tirar as traças disciplinadoras e aniquiladoras da vida. Precisamos não tanto mais quebrar do que cuidar, ocupar amorosamente para criar novos espaços no próprio espaço.                  
Seguimos  para a Conceição... 


agarralargadas com a força que ela convoca...





Lá nosso corpo fica mais leve, a tensão dos olhos dos outros não está mais presente. Somente a Conceição com suas memórias de pedra, chão, parede, adros, escadas, curvas para nos acompanhar. Ali podemos até nos aventurar a colher erva para um chá e repousar a pele e respirar suave e encontrar brecha no espaço... Rasgar a película do espaço e a nossa também para rasgar-se num encontro.



Lá na Conceição nossa travessia agarrarlargada foi vista por meninas de uma escola. Duas meninas que estão num canto do Morro gritam para as outras que estão em outro canto: "Elas estão andando com um pau na mão".  "Três mulheres com um pau na mão. HaHaHa".
Mulheres agarrarlargadas.

  
     

No fim uma pausa para um chá de erva colhida nos muros da Conceição. 




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