Pedras`16

Os textos que seguem são a reunião dos escritos produzidos por nós, Núcleo de Pesquisa, Estudos e Encontros em Dança do Rio de Janeiro, na ocasião da ida à  Lisboa para o Pedras 2016. A ida ao Pedras materializa um sonho/projeto de mais de um ano de trabalho que começou em 2015, com um encontro com a artista Mariana Lemos em nossa cidade, e que inundou nossos olhares, pensamentos e práticas com as questões que vêm sendo construídas e produzidas pelo c.e.m. nos últimos anos. A partir da experiência com a Mariana, começamos a desenvolver o projeto Cartografias do corpo na cidade, que se propõe a produzir escritas cartográficas no encontro com zonas da cidade que consideramos vibráteis e em transformação. A escrita como dança, a dança como política do encontro, a cidade como casa e a casa como corpo são interrogações que insistem em nosso horizonte.


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A chegada em Lisboa e no Pedras vem carregada de expectativa e desejo. E novamente como em outras ocasiões com essas pessoas, nada me parece mais importante do que ouvir, escutar, abrir o corpo para. Novamente a escuta tomando dimensões mais amplas, antena parabólica, concha acústica, corpo que vibra em ressonância com, sintonização.


A delicadeza de desutilitarizar o tempo em não ação e a ação de  inibir modos de operação já conhecidos para abrir espaço para o novo. Pensar com e não poluir o encontro com um pensamento previamente elaborado.


Erosão, abertura de fendas, rachaduras, abismos, buracos, desfazimentos desse chão. Como pensar o gesto de ocupação de um território? Nas conversas demoradas em que participamos sobre os movimentos de ocupações no Brasil, lançamos a proposta-gesto de fazer uma limpeza coletiva e afetiva do chão do espaço do cem como movimento de entrar em relação com, de abertura da atenção, de cuidado, amparo, apoio, acolhimento, e também paradoxalmente como repelir, impulsionar, empurrar. Os movimentos de ocupação sendo pensados não como invasão, saque, estupro, mas como a assunção do caráter público e comum de um espaço que é de todos, e que é transformado pelo afeto.
Transformar espaço de ninguém em espaço de todos, o público em casa, a casa em corpo.
Nessa casa-corpo aprofundar a dimensão do risco e da experimentação. Criar modos de estar que prescindem autorização. Descomprometer-se com a resposta, implicar-se em engordar a pergunta.


A palavra não sabe mais por onde acontecer, de repente ela desconhece seu lugar. Transita por territórios sem sela, selvagens e nesse transitar perde-se e emudece. Cala e dança com criança que dança junto. Dançando com os olhos de trás, com as costas, numa estrada totalmente paralela a de Narciso, sem nenhum encontro. Dança que faz ver o mundo em que se está, dança que cria o mundo em que se está. Que abre espaços que deixam bocejar, lacrimejar, lacrimar, lagrimar, latejar, soluçar, tremer, sacudir, vibrar, bambear, titubear,


A tentativa como caminho, livrando o julgamento do acerto/erro como ditadura da ideia. É que eu to viciada em escrever ideias, outras coisas demoro pra reconhecer, preciso de distância e aproximação. Talvez a escrita seja um exercício de abertura a acompanhar aquilo que só se pode ver na demora. De abertura com o que não se vê com os olhos da frente, mas com a ponta da caneta. Penso nas palavras que se secretam, sinto o cheiro da igreja de São Domingos, respiro o ar das camadas de pedra que foram queimadas.


Penso na dimensão da documentação…
Escrever para poder ler? Para capturar? Para partilhar? Para registrar? Para esquecer? Como se constrói língua para a comunicação com o estranho? É-se sempre estranho mas no estrangeiro é-se mais. Aqui em Lisboa sinto que existe um espaço buraco que demora a comunicar, que não se desvela com facilidade. Sinto um movimento necessário de descascar nozes, de abrir com jeito e tenacidade e cuidado. Cascas de sentidos que se explodem no que se diz-faz. Muitas cascas permanecem inquebráveis, isso não me incomoda, sei da impossibilidade de apreensão de todas as camadas, não é possível encontrar-se com todos os sentidos… A escrita como escavação de deixar aparecer as ossadas. Como exercício de manutenção da ferida aberta. Escrita que deixa aparecer a costura da letra… E as palavras seguem me escapando a apreensão e explicação. Por mais que eu queira, e que eu tente, e que eu resista a elas.


Nesses dez dias em Lisboa encontro e desencontro um alinhamento no latejar do existir. A minha sensação na Casacem me faz pensar em um magnetismo que tem asas, que encontra aderências e fibroses no espaço, onde pousa e se represa, mas que também se espalha indefinidamente.


Fui para Lisboa com a intenção de criar condições para lá retornar em breve, não entendo imediatamente porque, mas retorno ao Brasil com minha intuição me dizendo que isso não acontecerá. Chego e descubro que minha barriga está cheia de Rosa…  


Encerro assim uma escrita que só começa, nunca termina?


Lidia Costa Larangeira


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Passamos de fuso a dentro a fora em espiral. Em Berlim e logo em Lisboa dá pra ver flores que voam circularmente – diferente das que caem em movimento pendular. As cidades e as suas diferenças comovem. O vento que me bate aqui nessa sombra do Largo do Carmo e a calçada de pedras portuguesas tão cariocas em silêncio acalantam um mal humor de noite berlinense mal dormida. Não, não é rápido. Mas é possível que se arranquem espinhos metidos dentro das vértebras. Às vezes basta um cochilo. E tenho de repente a impressão de estar dizendo coisas para desenhar este gesto de amarrar a cordinha do balão de gás a um suporte que pese com a gravidade – caso contrário, voaríamos.


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A diferença entre o correio vermelho e o azul é que o segundo nos envia mensagens líquidas?


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Em Berlim tinham pássaros pretos de bico laranja e, como aqui em Lisboa, tinha também revoada de andorinhas. Em nenhuma dessas duas cidades vi gaivotas. Estou aqui lembrando disso e escrevendo sobre pássaros, porque nesse momento vejo pombos . . .


Que tipo de tecido são as fronteiras?
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Os espaços que trepidam, convocam. E assim sentir medo é a condição para desarmar. Que cada pedra pode sim dizer coisas que insistem: vai! coragem! E esse assunto todo de cidade e o que falam as nossas linguiças sanguíneas dizem que as coisas azulam desde que se mova a cabeça em algumas diferentes direções.


E quando o Absoluto insiste em dizer "existo!", ele mente. Isso é o que se encontra ao olhar para formigas procurando ali humanidade. Pôde-se sacudir as coxas por coceiras que viriam a nos fazer soluçar feito bebês engasgados para logo ver que não é para tanto. Porque as coisas mesmo tratam de se aguarem em outras formas.   


Exige-se dos pombos que sejam limpos e no entanto só no entanto pararíamos em chiados que a nós se enfiassem por reverberação. As sujeiras se guardam nos umbigos e há muito que se agachar e levantar e levantar e levantar. O peso que a gravidade fragiliza quando aponta sobre nossas cabeças. O grande sono. Lá vai o absoluto querendo tomar partido do nosso cansaço...


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Conversa-se com os pelos também. E as palavras se dizem, inclusive, pelas sobrancelhas.


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Se calhar há uma imprecisão na suspensão da caminhada e não adianta ir na busca de elementos visíveis que suportem este gesto. Microarranjos intensivos e temporais dos corpos e se para justo onde se era de parar [ . . . ] Automóveis impacientam-se com paragens e tornam-se ensurdecedores. - Ruas são de fluir!Ruim que hoje percebo um jeito escrita que descreva liricamente as coisinhas . . . Ruim . . . Olha, mas é que tinha um rapaz que descido de sua moto a estacionou num cantinho da esquina de uma rua que seguia aquática como se convém aos trânsitos livres da cidade. Num instante que o condutor da motoca desapareceu, veio logo descendo da rua transversal ao estacionário improvisado, um automóvel suficientemente grande para entalar-se na tal esquina. Disso em diante todos os passos dos carros passaram a deixar de contar com a falsa promessa de liberdade que se pinta sobre os rumos das cidades. Isso tudo durou pelo menos uns 15 minutos, até que se pôde – tendo a moto sido removida para cima da calçada – escorrer as rodas dos carros pelas pedras das ruas na promessa (não-)viva de nenhum impedimento. De nenhuma incidência que justamente altere os possíveis mal costumes das certezas.


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Escrever com interrogações sempre que possível para que os olhos se virem em nervos que não vêem, mas experimentam.


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Tem alguma coisa com as paredes... Com as pedras... Ou com as coisas que se parecem com pedras... É um entrar na parede e não: mais nada disso. Agora as palavras já vão espetadas. Mas talvez tenha um pouco a ver com os dinossauros que a Sofia fala. Com ser fóssil. Com ser peixe. Tem alguma coisa com as superfícies... Com escutar o chão com os pés. Com escutar as paredes com o topo da cabeça. É o que ressoa...


todas as paredes têm fósseis.


todas as mãos não são afináveis, . . .


cada instrumento tem um tempo de afinação . . . ?


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(as bundas podem se parecer muito com os jardins)


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Algumas fotos:


o pássaro no topo do muro de Berlim. as palavras nas paredes. as palavras nas placas de pedra dando nome as ruas em Lisboa. os 7's nos altos das portas. os passeios estreitos. a volatilidade dos órgãos. a altura do teto da igreja de São Domingos. a diluição de um autoritarismo do lado a lado. as línguas. as línguas. as línguas. as paragens.


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                                    Laura Vainer


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Ocupar uma praça e se ocupar da praça. Aproximar.  Pombos e escritas. Mormaço recolhe à sombra do muro. Assusta, suspende e retorna, sem mais, a mesma pedra. A luz desenha a densidade do encontro enquanto o pão preenche espaços entre dentes e bicos. Escorre sede de vinho- água. Reconheço corpo. Delírio de sentir e forjar. Aceito o convite para habitar salão público de fundo rosa chá sob luminárias e galhos quase verdes, flor, quase dança. Corre trilho, grunhindo, grisalho rio por debaixo das pedras. Me interesso pelo subterrâneo e pelo calor que colorem a pele. De cócoras, defeco a mim mesma. Esvazio. Em direção aquele corpo, observo o Largo do Correio Mor e a “utilidade pública”. Reconheço Bernardo, ladeira, grade e varal. “Pago de segunda-feira a sexta-feira das 9:00h às 19:00h”. A “paga” se estende, umedece as rachaduras. Era contínua. Qual o máximo de volume de ar deslocado por um pombo, um sabiá e por assobio de gente? Estremece. Morde lábio enquanto a porta bate insistente. Desloco apoios até as costas de alguém. Insiste mosca, Era e banco vazio. Sofia inaugura água e riso na praça. No colchão, uma dedicatória. Lembra a ação da cama ausente de acomodação, fragmentos de madeira e memória em travessia pelo Morro da Conceição. Ânsia, Corre, chove. O aroma úmido da terra se intensifica. Aproxima lugares detrás da tempestade. Ainda em trânsito. Talvez seja sobre dar e receber; e também sobre como permanecer. De ficar nesse relevo inclinado e esburacado. Vou atrás do chocolate de laranja.




Travessa do Convento da Encarnação. Casa de uma certa espécie , parente da mosca e do mosquito. Voos e vazio. Repara folha que perdeu água e não resistiu à gravidade da terra. O papel. Janela, isopor, garrafas e parede-muralha. “O mundo é nosso”... “Sara Kita manda”.................”Bom dia”. “10.03.2014”................“É noiz qi ta manda neste bairro/ crescemos ctg, ctg vamos ficar...”. “kem fala nas costas respeita na cara”. “Bofia não entra aqui!!!” “Puta do Roso”. “Varios momentos bons neste bairro”. “Errar é humano/Pecar é divino”.“fuck pos xibos”. “Domínio...” De quem? Sibilar a libertinagem como valor, decompor. A compostagem, reverso espacial do pé de tangerina. Fuga vertical para o olho de turista. Quem mora aqui? Passo corrido, beco, anti- verso, vestígio de reza alguma. Quem condena? Pune? O movimento vem de fora e de dentro? O sol e as conversas amornam minha nuca. Perco mais alguns minutos nessa morada antes de a- largar com um ramo seco a- travessa e as costas da pálida esquina


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Beco. Santo Antônio e os peixes, grandes que comem os pequenos. Um caminho e uma porta. Para cima Graça, à esquerda a casa de alguém. Aqui e à direita, a rua que também é casa. Corpo-Casa. O vento continua a soprar intimidades cá fora. O colorido dos vestidos mistura pele de corpo e de cidade. Um bebê resiste aos escombros e aos estranhos enquanto o anjo de asas negras segura outro rebento. Eles estão na escada, na horta e no jardim. Por que acompanhar formigas? Volto aos vestígios das portas. Estas são da idade média. Resistiram, em 1755, ao movimento da terra que fez mover o mar. Maresia. Poeira. Teia. Cupins. Prego e ferrugem. As lentes escuras a esconder-revelar textura de palavra e olhar. Preciso friccionar o em(torno). É preciso precarizar para nascer? Lembro das margens e dos escombros de lá apagando vestígios. O sol gira em torno do caule. Flerta com o entorno sem deixar de crescer. A formiga vai ativando as antenas da pele. Uma camada e outra, como rua, superficial e subterrânea. Escrita- carvão- flor- maçaneta- sorriso- reencontro de costas. Dança espiralada e engordativa de fezes- poeira- amargor- ardor- fala- pio. Necessidade. Encontra mais uma vez. Vê as flores miúdas e rasteiras? O amarelo detona uma atenção estranha ao esfíncter. A rarefação vai se despedindo com a chegada dos buracos do chão; cada acidente, único. Preciso inclinar. Às vezes, deitar. Adormecer. Esquecer e lembrar para permanecer nessa paisagem salgada.
Thais Chilinque
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Chego em Lisboa e vejo o Rio, arrepia reconhecer o colonizador e o quanto daqui tem lá. Subindo os morros lembro do Morro da Conceição, lugar no Rio onde caminho quase toda segunda-feira; é estranha a sensação, parece que não estou a um oceano de distância do meu país, parece que de alguma forma o reencontro. Sinto pesar esse reconhecimento de colonizado-colonizador, sinto mais ainda quando escuto dos moradores da cidade que Lisboa mudou tanto que está difícil habitá-la, como tudo encareceu, como a cidade está sendo construída para turista e tudo sendo especulado. Respiro fundo, sei que vou voltar ao Rio faltando algumas semanas para as olimpíadas e que faz um tempo que vivencio esse processo de cidade-commodity e intensamente a revitalização da zona portuária e junto com isso as remoções violentas e ilegais, o encarecimento do custo de vida, a falta de diálogo com a população, o capital devorando o social.  Respiro um pouco mais e continuo, na sala branca do c.e.m enrugo o pano e me aproximo. As ocupações no Rio engordam uma conversa demorada, já estamos a re-existir na cidade-mercadoria, fazendo da escola a própria casa, lugar de experiência de proximidade, cuidando dela, limpando, dormindo e criando outros modos de educar para além da cartilha. Ganho fôlego.


Escrever na rua e re-parar. Escutar a cidade para entender como transformá-la, como ocupá-la. Escuta implica demora. Sento no chão do Largo de São Domingos percebo o som do vento nos intervalos da música de um tocador. A cidade se descama, me atravessa, sem entender direito ainda o que é isso de cidade vou gaguejando o que ela ressoa em mim, escrevo. Penso que nesses micro movimentos já está a acontecer alguma coisa que resiste, quando pessoas saem às ruas para re-parar já estão movimentando algo que respira, quando nos demoramos em conversas acerca da cidade, quando limpamos o chão juntos, quando ocupamos o Minc e os colégios há algo que fissura, cria espaço. Nessas aberturas que encontro a cidade, arejo o corpo, ganho tônus para continuar.


No Largo do Carmo, estendo uma canga e durmo. Acordo com a chegada de um banquinho cor de rosa, Bernardo. Logo mais a praça se recheia de escrevedores. Ficamos um bucado ali. Muitos turistas, muitas selfs. Lisboa chegava pra mim pela água da fonte, espirrava nos meus olhos, via mais pelas costas que pelo olhos da face, exercitava olhar pelos cotovelos. Enquanto escrevia a coreografia da polícia acontecia no largo, ativando a circulação da cidade.

Respiro…
Continuo...


Bruna Gouvêa





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