Cartografia do corpo na cidade: ocupação afetiva e intervenções artísticas no Morro da Conceição



O texto abaixo foi apresentado na Jornada de Iniciação Científica da UFRJ em outubro de 2016 e fez parte da sessão de trabalhos sob o tema "Cartografias", do Departamento de Arte Corporal. Trata-se de um texto de apresentação do projeto realizado pelo Núcleo e que conta com o apoio da Pró-Reitoria de Extensão, a partir de financiamento via bolsas PIBIAC. Embora o título apresente um recorte do trabalho realizado no Morro da Conceição, o texto traz ainda outros desdobramentos da pesquisa.
--




          O projeto Cartografias do corpo na cidade: ocupação afetiva e ações artísticas no Morro da Conceição é desenvolvido pelo Núcleo de Pesquisa, Estudos e Encontros em Dança do DAC/UFRJ e tem como força motriz o desejo de estarcom pessoas e lugares refletindo e criando práticas de corpo e cidade. A dança em que investimos acontece na fricção entre arte-e-vida como uma composição de corpo e cidade e escrita e imagem e som e. A atuação do Núcleo aposta na ocupação afetiva e artística de espaços como procedimento para produção de conhecimento em dança. Trata-se de uma dança expandida que produz percepções, reflexões e fazeres que questionam e re-localizam nossos processos de formação e criação. O termo “dança expandida” está aqui em consonância com o conceito de “cena expandida”, proposto por Eleonora Fabião. Tal termo nos incentiva a pensar uma dança que é, como dizemos entre nós, gaga. Uma dança que gagueja… Esta atitude de pesquisa que se interessa pela dúvida como um lugar potente para a construção de conhecimento, traz uma outra percepção do que é fazer e pensar dança. Utilizamos o método da cartografia: abordagem que entende a pesquisa como acompanhamento de processos; produção de subjetividade; criação de realidades. Neste tipo de investigação a relação de sujeito-objeto é íntima, afetiva e de construção mútua.

             Partimos do desejo de estar na zona portuária do Rio de Janeiro, mas não temos a necessidade de permanecer exclusivamente neste espaço. Praticando a atenção de modo aberto, nos mantemos próximas aos acontecimentos político-culturais de regiões da cidade, alargando, inclusive, os contornos da Universidade. Na prática nos deslocamos do lugar da sala de aula, do lugar do espetáculo e da exibição. Experimentamos dançar caminhadas, falas e escritas, e por isso entendemos que a nossa prática expande a dança. Exercitamos composições de dança e escrita, dança e fala, dança e movimentos cotidianos… E as materialidades  que surgem nesses “laboratórios” são dança na medida em que a gente experimenta elas como dança: é quando eu entendo que, enquanto escrevo, estou dançando que a escrita passa a agir como uma dança: como uma composição de movimento, espaço e tempo. Realizamos caminhadas, conversas, paragens – expedições cartográficas – em que nascem ações artísticas que, durante o primeiro semestre de 2016, emergiam majoritariamente, na região portuária do RJ. Ocupamos espaços mal-ditos, criamos ações artísticas no encontro com as estruturas e afectos dos espaços públicos de modo a ressignificar as relações de corpo e cidade. Nos reunimos semanalmente na Casa Porto (Zona Portuária) de onde partimos para, no contra-fluxo da velocidade da cidade, nos demorarmos acompanhando o processo veloz de transformação que a cidade do Rio de Janeiro vem atravessando.

          Existe uma pergunta que atiça os encontros do Núcleo e que persiste na nossa pesquisa: por que dançar? Essa interrogação é uma espécie de porto para o qual nos voltamos sempre que precisamos reposicionar as linhas desta pesquisa que realizamos. Esse questionamento (porque dançar?) se vira na própria dança. Uma dança que ao se produzir, se questiona. Que quer dizer isso? “Uma dança que se questiona?” Quer dizer que as materialidades de dança que criamos são, elas próprias, objeto a ser indagado, reflexionado. Essa interrogação tem se desdobrado em algumas outras na medida em que a pesquisa caminha… Então: Por que dançar? Como dançar depois de junho de 2013? Como articular as questões da nossa cidade com a dança na universidade? Como desafiar a dança a encostar nas questões políticas do território em que atuamos? Foi assim que nos encontramos em dança com alguns dos movimentos de ocuypação que têm questionado, entre outros assuntos, as políticas de gestão dos espaços públicos e os modos de convivência. Realizamos proposições no #OcupaMinC (RJ), no #OcupaSus e no #OcupaAmaro, ocupação realizada pelos estudantes secundaristas do Colégio Estadual Amaro Cavalcanti. O que nos moveu a estes espaços foram as interrogações, um desejo de produzir dança no encontro com; um desejo de posicionar a dança no encontro com estes movimentos de ocupação.

           Temos como objetivo experimentar o encontro como com-posição, exercitar o estarcom – pôr-se com o outro  –  compreendendo o encontro como uma atitude ética: modo de relação que se ocupa em criar agenciamentos que aumentem a potência dos corpos. O termo estarcom é discutido na revista “Pedras d'Água - A arte de estar com pessoas e lugares”, publicada pelo c.e.m - centro em movimento, espaço de investigação situado em Lisboa que se  implica nas pesquisas de corpo e cidade. Observamos, estudando as publicações do c.e.m, que o termo aparece grafado de maneiras diferentes: estar com, estar-com e posteriormente estarcom e estarcom. É interessante notar o caminho que a palavra caminha para consolidar-se como um conceito que emerge de uma urgência, de uma necessidade. Nas palavras de Margarida Agostinho, diretora artística do c.e.m:

Detecto que as propostas que alimentamos no c.e.m têm muitas vezes essa característica: como não trabalhamos por objectivos mas por urgências, frequentemente organizamos palavras pela necessidade de nomear o indizível até que ele pela insistência da prática se transforma de facto em algo que pode ser dito e então vai ocupando o lugar do nome que lhe foi destinado. (...) Pessoas e Lugares não fala de quem nem de onde, mas da experiência de Estar-Com. Também não fala de “O quê”. Estar-Com para nós não denuncia a necessidade de um quê para onde deságua o Estar. Pessoas e Lugares não são por isso alvos a “estar com”, mas sim potenciadores da relação que faz aparecer a particularidade da acção Estar-Com enquanto ela própria, sem necessidade de qualquer finalidade para se cumprir. É dessa atenção, desse espaço aberto que convida a fazer aparecer o que até aqui não tinha forma, que se reorganiza tudo o resto que já lá estava, da mesma forma evidente que colocar mais uma rosa num bouquet obriga a que todas as outras flores que já lá estavam se reposicionem. Não se trata portanto de uma obrigação filosófica ou moral mas de uma evidência física.

Achamos importante pontuar que este ano fomos convidadas pelo c.e.m. para participar do Festival Pedras’16, sob o tema Casa Connosco. Participamos como propositoras - ou no vocabulário dos artistas que constroem o festival -, como demoradoras na atividade “Os corpos nas praças, as ocupações, os movimentos do comum para além do que vínhamos chamando de democracia”.

           Para finalizar vamos falar da importância que a produção de cartografias assume no nosso trabalho. Como nos interessamos por liberar a dança de uma posição rígida e definitiva, nos preocupa, também, o tema do arquivo. Refletimos e discutimos sobre os modos de documentação da dança que fazemos. Como a dança em que investimos não se encerra nela mesma, há necessidade de partilha, de relação, pois é di sso mesmo que se trata, de relação. Então nos perguntamos sobre como partilhar a experiência de uma dança que é impermanente, que a cada repetição é diferente? Como essa partilha pode ser ela mesma uma (outra) experiência em dança? Neste sentido, encontramos na produção de cartografias uma possibilidade riquíssima de registrar afetivamente as nossas experiências em dança. Produzimos textos, imagens, áudios que contornam um território sem torná-lo rígido, e que tornam possível que possamos olhar para ele depois de passado o acontecimento. Assim, podemos desdobrar teoricamente as questões que determinada expedição cartográfica suscitou. As cartografias também são danças. Coreo-grafam nossas passagens pelos lugares da cidade. Nesta experiência sensível de ocupação da cidade elas [as cartografias] aparecem como relevos das paisagens visitadas; respostas provisórias para as perguntas que nos atravessam no decorrer do estarcom as pessoas e os lugares e que aparecem como portos: tanto acolhem, quanto excitam a navegação.
--


-

Comentários

Postagens mais visitadas