toda terra é indígena e preta- ou a parede como superfície do gesto




Precisamos realizar uma prática de escrita coletiva no alojamento da UFRJ depois do incêndio que desalojou vários estudantes, inclusive vários alunos dos cursos de dança.


Nesses tempos, estar com o corpo presente nos espaços da universidade tem sido um desafio e uma obrigatoriedade ética… a precariedade e a calamidade que se instauraram e que se anunciam próximas nos chamam à cartografia… acompanhar com corpo e palavra as transformações da paisagem por necessidade política.


Começamos com um passeio pelo chão dos prédios. o estacionamento, os fundos, a horta coletiva, a praia.. a areia, a água, o lixo… quanto lixo… imagina se isso fosse limpo? se fosse limpo nós não estaríamos aqui… e o cheiro? às vezes a gente vira meio peixe… a beleza na amargura… da possibilidade e descaso…



adentramos - o refeitório… lá a dimensão da escrita retorna à força pelas paredes.
toda terra é indígenas e preta… toda a terra é indígena e quilombola, o resto é estupro, é faca cravada…um desenho de israel98 perdura na parede por quase 20 anos…a persistência,  a duração, a permanência e o desgaste do traço... Isso nos toma a atenção, ficamos um tempo tocando os olhos nesse desenho, nos buracos dessa parede, nas bordas desgastadas pelo tempo, nas cores desbotadas e ainda vibrantes.


subimos  para o castelo de cristal, Módulo da Thaina no prédio reformado.
Abre-se o convite de escrever na parede do quarto. espaço íntimo. porta fechada.

escrever para não esquecer- o tal paradoxo de registrar o que precisamos lembrar para podermos abrir espaço na memória, no corpo.

o gesto escritural tem gosto diferente na parede.
das muitas palavras possíveis, o que é necessidade?
qual é a palavra necessária?
qual o gesto necessário?
proposta de uma escrita que não é efêmera como o gesto, mas que permanece, que gruda e fica.. perene.
não é só o traço e o movimento do corpo talhando a tinta no papel. é o significado e o conteúdo que se imprimem na rugosidade da parede e que vão acompanhar os olhos da Thaina pelo resto das manhãs em que ela acordar naquele quarto- legado.
o significado e o conteúdo tornam-se tão relevantes para nós quanto o traço e o gesto de escrever.
um certo pudor em colar palavras na parede nos invade. aparece a especificidade da superfície… uma coisa é o papel do caderno pessoal, outra é o giz no banco da praça, outra ainda é a cartografia no blog, e uma outra é a sensação toma essa escrita da parede… Sensação de precisar, obrigatoriedade ética, de necessidade política.



Pra mim o imperativo é dar corpo pra parede…
transfusão,
tradução,
transcriação,
inseminação,
imunização,
dissecação,
extubação,
extração,
saturação,
infusão,
contaminação…
um corpo sem órgãos
fogo nas entranhas.












E quem sabe assim a gente possa realizar que toda terra é indígena e quilombola...




Lidia

Comentários

  1. Maravilhoso, emocionante! Obrigada Lidia pela partilha que fica cartografada na minha memória, deste domingo, em que te li, a olhar pela janela de Lisboa a ser atacada por abutres imobiliários... resistir ouvindo e agindo! Mariana Lemos

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